terça-feira, 14 de agosto de 2007

Uma questão de dignidade


Esta não é a melhor altura do ano para a indignação. Metade dos portugueses está na praia e os restantes só pensam o quanto gostariam de lá estar. Não há pois cérebro nem moralidade disponíveis para os grandes rasgos críticos.

E no entanto, se há facto recente que merecia uma reflexão séria e participada, ele seria certamente o do comportamento da jornalista Márcia Rodrigues.

Recorde-se o essencial. Em entrevista realizada ao embaixador do Irão em Lisboa, Márcia Rodrigues, jornalista da RTP, decidiu vestir-se como manda a disciplina indumentária dos Aiatolas, tapando-se de alto a baixo, lenço na cabeça e exibindo umas ridículas luvas pretas. Isto passou na estação de serviço público no programa Avenida Europa dedicado, como o nome indica, a questões europeias.

Segundo um porta-voz da embaixada não foram dadas quaisquer indicações à jornalista como se vestir. Acrescentando, segundo o DN, que “mesmo que alguma embaixada tivesse a pretensão de dizer a um cidadão português como ele deveria vestir-se dentro do seu próprio país, esse cidadão não era, de forma alguma, obrigado a obedecer às instruções dessa mesma embaixada”.

Estou em crer portanto que este imbecil acto derivou da vontade de fazer espectáculo, introduzindo numa banal e invariavelmente chata entrevista algo de excitante, um apontamento visual inesperado. Márcia terá pensado que ficaria muito giro vestir-se à iraniana mostrando assim também, num plano mais político, o contraste entre civilizações. Terá talvez imaginado que esse pequeno acto de prestidigitação seria mesmo visto como excelente jornalismo e até, quem sabe, pudesse fazer subir ligeiramente as muito fracas audiências do seu intragável programa. Nem por um segundo lhe passou certamente pela cabeça que a leitura podia ser totalmente desfavorável e representar o quanto ela está disposta a ceder na sua dignidade como jornalista e como mulher só para fazer uma entrevista.

Mas este facto excede em muito o voluntarismo de uma jornalista muito ambiciosa mas objectivamente pouco inteligente. Ele mostra como a civilização ocidental está desorientada, sem uma noção precisa do que quer e do que não quer, e onde não é possível estabelecer um consenso mínimo sobre valores civilizacionais. Desde logo caberia fazer uma singela pergunta. Porque é que em casos destes prevalece o princípio das leis islâmicas e não o princípio das leis que garantem a liberdade individual da Europa e do restante Mundo Ocidental? Porque é que Márcia Rodrigues achou que se devia vestir à iraniana e não que cabia ao embaixador do Irão aceitar que ela se veste como lhe apetece? Medeiros Ferreira, uma pessoa que aliás prezo, comentou que quem saía mal da fotografia era o embaixador. Ora a verdade é que quem cedeu não foi ele. Na realidade, um tal acto representa a capitulação dos princípios que o Ocidente diz defender e retira-lhe qualquer argumento de distinção cultural positiva.

Uma relação saudável entre diferentes culturas só é viável desde que cada um mantenha e aceite as suas diferenças. Eu não vou atravessar o meu nariz com um osso só para falar com um índio da Amazónia. Do mesmo modo que não exijo que ele se vista e meta uma gravata. Porquê então esta vasta cedência a um preceito islâmico que segundo as nossas próprias convicções é discriminatório e humilhante para as mulheres? Porque é que jornalistas e políticos cedem com tanta facilidade a uma lei que não só, e felizmente, não faz parte das nossas sociedades como até achamos anacrónica e injusta?

Nesse sentido, este comportamento de Márcia Rodrigues não é só inaceitável aqui em Lisboa. É-o igualmente quando ela e outras desnorteadas jornalistas como ela se cobrem de véus a cada vez que rumam a um país onde vigoram tais leis. Se não há condições de dignidade, individual e cultural, para se fazer uma reportagem, então não se faz. A exigência da aceitação da diferença é um valor que não pode só servir um lado. Não basta exigir que se respeita o outro, se não somos capazes de nos fazer respeitar a nós próprios.

E é precisamente neste campo que estamos claramente a perder a batalha. O Ocidente simplesmente não se dá ao respeito. Desde logo pelas barbaridades que comete, mas igualmente nesta permanente cedência face aos seus próprios valores enquanto civilização. A troco de qualquer coisa, uma reportagem, um negócio, um protagonismo político, homens e mulheres do Ocidente logo se dispõem a renegar a sua própria cultura, da qual deviam antes de tudo o mais ter orgulho e defender com frontalidade e dignidade.

Para terminar, perdoe-se uma referência pessoal. Não uso gravata. Não tenho aliás nem uma. Aliás não tenho sequer uma única camisa. Há muitos anos que decidi usar confortáveis t-shirts pretas, as quais compro aos lotes de cinquenta, feitas à medida, a uma fábrica. Duram alguns anos e libertam-me da rotina de não saber o que vestir a cada dia. Em muitas ocasiões, festas, recepções, actos oficiais, tem-me sido exigido o cumprimento do traje formal. Nunca mudei de indumentária. Não por falta de respeito a ninguém, mas por uma questão de respeito a mim próprio. E só uma vez me disseram que sem gravata não podia entrar. Fui-me embora e não perdi nada com isso.

Leonel Moura, Jornal de Negócios, 08 de Agosto de 2007 [fonte]

0 comentários: